quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Comentários sobre "Tempos de Olívia"



Jardel Dias Cavalcanti

(Doutor em História da Arte pela Unicamp,

Prof. de Crítica e história da arte na UEL,

Colunista do site  www.digestivocultural.coom)

 

Anseio pela escuridão para que algo se contraponha à luz que quero ver brotando de mim novamente.

(Patricia Maês- Tempos de Olívia)

 

Segundo Oscar Wilde, “o crítico é aquele capaz de traduzir para uma outra maneira, ou para um outro material, sua impressão das coisas maravilhosas”. Não é diferente do que pensava o compositor Claude Debussy, quando exerceu a atividade de crítico: “Não tenho a pretensão de fazer "crítica", mas de expor, simples e francamente, minhas impressões. O que se deve fazer é descobrir os principais impulsos que deram origem às obras de arte e o princípio vivo que as constitui."

O meu propósito ao apresentar o romance Tempos de Olívia, de Patricia Maês, dialoga com as colocações acima. E a pergunta que me fiz ao terminar de ler o seu livro foi justamente esta: qual o princípio vivo que constitui esta obra? Que elemento torna importante ao mundo contemporâneo a necessidade de sua existência?

Entre a necessidade de expor minhas impressões ou responder à difícil colocação do lugar dessa obra no contexto da criação contemporânea, optei pela primeira, mais fácil de resolver. No entanto, não posso deixar de opinar, mesmo que en passant, sobre a segunda questão. Creio que a resposta se encontra no interior do próprio livro, formulada pela escritora.

No centro do livro é narrada a crise criativa de uma personagem escritora. Dividida entre a necessidade vital de criar e a melancólica constatação de que isso se tornou impossível, ela afirma sistematicamente o lugar da arte e do artista num mundo de valores vazios, aquele mundo já denunciado por T. S. Eliot como o mundo dos “homens ocos”. Esse homem eliotiano, tal como o homem contemporâneo, é “sombra insaciável de aparências esplendorosas e aterradoras realidades; sombra mais escura que as sombras da noite e envolta nas dobras de uma deslumbrante eloquência vazia”, para emprestar as palavras de Joseph Conrad.

E creio que aqui esteja a resposta ao sentido de sua obra para nós contemporâneos.  Talvez, em Tempos de Olívia, se encontre uma das mais felizes definições do que seja a função de um artista hoje: “somos os gladiadores matando as feras que matariam os mais sensíveis.” Cada nova obra, como essa de Patricia Maês, que é um banho de poesia, resgata o humano das aterradoras superficialidades vazias, ou seja, da “desumanização dos homens”.

Tempos de Olívia é prosa, mas prosa poética. Não se deixa levar pela simples narração objetiva. Acrescenta timbres inusitados e colore com notas emocionais cada frase. Faz com que nos adentremos na turbulenta psique de sua personagem Olívia como se dentro de uma caverna escura pudéssemos sentir o frio das pedras, os desvãos das rochas, o intricado jogo de luz e sombra que nos confunde a realidade.

***

O que me proponho, a seguir, é apenas comentar algumas questões presentes no romance de Maês.

 

A CRISE

O medo diante da tela branca, da página sem uma palavra sequer escrita, de uma partitura muda: eis o drama do artista em momento de crise criadora. O mote principal do romance de Patricia Maês deriva desse drama. “O que houve comigo é que de repente abri mão de um caminho seguro e caí em um buraco de crise na criatividade.”

Diante da impossibilidade de criar, a personagem Olívia vai tecendo um universo amplo de investigações sobre si mesma e sobre sua relação com o mundo: seja o da arte, o do amor, o das amizades ou do seu público. No interior do romance, numa belíssima descrição, o drama do processo criador bloqueado:

“Estou vazia de tudo. Bebo muita água e nela não vem o sopro do “faça”. Nenhum anjo me dá a mão nesta hora de silêncio por dentro. Nunca senti isso, a falta de movimentação do espírito, falta de inquietação (...). É novo este nada por dentro, anseio do avesso, vontade de parar e não tocar em nada. Até minha respiração é hoje de outra natureza, natureza que contempla, sem querer transformar o visto em algo nunca visto.”

O resultado é devastador, uma paralisia da própria vida que vai se constituindo em torno da personagem:

“me vejo como há muito tempo não me via, a mulher que recebe vida, que sente na pele a vida, mas no entanto nada é feito disso, nada pode ser feito agora, e nem sei o motivo.”

              O drama da personagem é inicialmente exposto na ideia de que um cansaço a invadiu e é explicado pela ausência de ressonância de suas buscas espirituais e/ou artísticas no mundo externo, absolutamente vazio e superficial. Ela diz: “cansaço não de ofício, mas sim de existência interior para a qual não tenho visto correspondência nas coisas externas.”

O “fogaréu selvagem” que a consome durante todo o percurso da narrativa não é outra coisa que o resultado do desespero diante da incapacidade de criar. A arte é sua raison d´être, sua felicidade realizada, seu refúgio possível, a finalidade que justifica sua existência. “Para mim, é tudo o que conta”, diz Olívia. O mundo existe para ela em sua essência poética, mas tornar isso realidade para uma página em branco se tornou difícil, impossível, no momento.

“A observação de tudo, no momento, faz apenas com que eu guarde as impressões, sem ter nada a revelar do lado mais íntimo das coisas, aquilo que dependeria de mim para outro alguém vir a saber.”

A explicação sobre o sentido da existência dos artistas (esses “deuses tortos”) e da arte é produzida no mesmo movimento da crise de criação que a envolve. Gerando uma reflexão sobre o sentido da própria crise, revela o resultado que a literatura teria na vida de seus leitores. Ela diz, em termos claros qual é esse sentido:

“Saindo da realidade mais fremente, premente, entrando na ficção, as pessoas têm a chance da cura, do encontro com um lado de seus eus que ficavam à espreita aguardando oportunidades de espelhamento para se render à consciência.”

              O artista seria, então, numa bela metáfora criada por Patricia Maês, aquele que “coloca o coração na ponta da lança e o oferece às feras.” E sua missão é clara: “A beleza é nosso papel, e só por ela estamos aqui.”

A razão pela qual Platão excomungou o poeta da República se deve ao fato de que o artista cria a partir da liberdade que transcende a moral. Como resume o texto de Patricia Maês, é este artista que interessa: “Vamos defender a vida, Doug, numa concepção puramente artística e não moral.” Aqui ressoa a máxima de Oscar Wilde, em sua apresentação de “O Retrato de Dorian Gray”, que diz que “não existe isso de livros morais ou imorais. Livros são bem escritos ou mal escritos. E só.”

 

SENSUALISMO

“O que seria esse aroma de coisa roxa?”                    

Em Tempos de Olívia, há um sensualismo nas descrições do próprio corpo da personagem, das suas vestes, da própria aparência. Como diz Olívia, ao se apresentar:

“(...) herdei de minha mãe um porte absolutamente forte, um tronco esguio e alongado, braços delineados como se desenhados, como se os exercitasse numa piscina diariamente. Um mistério essa herança sem esforço, mas a beleza é um de meus dons e não posso fazer nada. O dorso firme cria em mim, de feição tão suave e delicada, um contraponto interessante e que prende. Delicadeza e força juntas, a chave para ser uma mulher que intriga, e eu sei disso.”

“O espelho é meu companheiro.”. Outra afirmação que parece dizer muito sobre Olívia: ela se vê primeiro para só depois ver o mundo. Uma sensação fica para o leitor, a de um corpo presente, insistentemente belo e sensual, e que parece ter, na determinação de ser o que é, um valor plástico/orgânico em si mesmo. Daí deriva boa parte de sua reflexão sobre o mundo, as pessoas, a sociedade onde trafega, num jogo de espelhos onde a imagem de si, enquanto corpo sensual ocupando espaços, se abre para conhecer da pele para dentro o exterior da realidade.

“(...) sinto o ar gelado da noite na colina entrando na minha roupa, resfriando a mulher quente de vinho, medo e desejos sem nome. (...) Sou um ser desgarrado de tudo, e meus músculos se contraem, meu sinal de força.”

Em um momento de susto, por exemplo, quando se perde na pousada e um homem quase a aprisiona no escuro, sua resposta ao medo é o cuidado feminino de si mesma. No simples ato de se pentear encontra sua força enquanto ser no mundo, livre e agente da ação que a faz se afirmar enquanto mulher:

“E me penteio obsessiva, gesto de mulher que quero saborear até o limite, a mão que corre pelo cabelo longo, o cheiro de limpeza e perfume de flor, a mulher que sou, a mulher que nunca vai desabar a ponto de perder isso. Eu sou bela e forte, e disse resoluta “me solta” à força que me prendia há pouco. Eu sou solta, sou solta, sou solta. Sou mulher e nunca fui vulgar.”

              O sentido da sensualidade atravessa o corpo de Olívia, principalmente nas escolhas das roupas que veste e que refletem bastante a situação existencial da personagem. A escrita que gera prazer na descrição de um simples vestido invade vários momentos do romance. Ao se deparar com a descrição seguinte: “Se eu vestir hoje novamente um vestido verde de flores brancas (...)”, o leitor poderia tomar para si o famoso verso “o meu pensamento tem a cor do seu vestido”, de uma letra do cantor mineiro Lô Borges.

Em várias outras passagens, o vestido é a medida dessa sensualidade:

“O vestido azul de Istambul não sai de minha pele há dias, há tempos, e ele deverá me acompanhar até o fim. (...). Na rua as pessoas me olham admiradas. Esse vestido de fato tem um algo a mais.”

O corpo de Olívia, além de simplesmente existir como uma presença estética encantadora é o dado mais vivo de sua autoconsciência de ser vivente, chegando mesmo a tornar-se encenação dessa existência:

“Sentada diante da mesa, o ato de partir o alimento já é em si uma obra de arte. Sou a atriz que diante de uma plateia lotada, faz a cena do pão sendo cortado, e isso é a coisa mais importante da peça. (...) Corto o pão, coloco o pedaço na boca e mastigo como quem mastiga este tempo presente, escolhido para ser inteiro meu. Estou comendo com o corpo inteiro. E nunca senti gosto tão maravilhoso.”

A sensualidade é o resultado da capacidade de se relacionar com o mundo a partir de sensações, do cruzamento do corpo com os objetos/seres animados ou inanimados. É o que acontece com Olívia, que não deve diferenciar seres e objetos na sua relação erótica com o mundo:

“Experimento anéis, levo-os para perto do rosto, como se eles realmente pudessem me dizer algo, mas é um carinho, apenas. Queria ter cada pedra dessas cravada em meu corpo, e eu inteira sendo a joia que leva as intimidades de outras figuras, guardadas desde os tempos em que essas maravilhas foram forjadas.”

Quando quer lidar com problemas, o corpo de Olívia responde em consonância com a natureza, numa oferenda sensual da nudez ao sol metafórico da indecisão:

“(...) hoje aprendo a lidar com o passado de forma lânguida e reverente e fresca, como a manhã em que eu quis me estender nua na varanda onde espirrava garoa fina junto com indecisos raios de sol.”

Ao transformar seu corpo, cortando o cabelo ou usando tal vestido, por exemplo, sua personalidade altera a sensação de si mesma, às vezes imprimindo segurança, força, autoconfiança, felicidade etc. É o corte do cabelo que a desnuda e é o toque do vestido, sua sensação na pele como fonte de prazer, que a deixa delicada:

“Adeus às lindas mechas, e agora é meu rosto inteiro, pleno e quase desprovido de moldura, que se mostra assim adiante de tudo o que eu sou, o que vem na frente e se revela em primeira mão. E o toque doce de mim vem na roupa, ah, sim, a mesma, meus vestidos, dos quais jamais abrirei mão. Estou tão delicada e forte ao mesmo tempo, e sinto por mim mesma um orgulho também indescritível, como tudo atualmente.”

Patricia Maês consegue criar na sua literatura algo raro entre as escritoras mulheres. Seu poder de transformar em literatura as sensações do corpo feminino em sua relação erótica com as roupas, sem apelo fetichista, numa clave de pulsão libidinal delicada que a transforma numa  sofisticada escritora fenomenológica do universo da mulher. Uma escrita que gera, além do “prazer do texto” (no sentido reclamado por Roland Barthes), a revelação, na intimidade da linguagem, do sentido da intimidade do feminino.

 

O OUTRO SI MESMO

Em relação à personagem Ana Beatriz, a escritora tem um olhar analítico, que observa a partir de pequenos detalhes o fiasco de uma existência em profundo desmoronamento. Mas essa atenção ao outro é a forma que a autora encontra para que Olívia investigue seu próprio eu, na diferença, no que do outro recolheu de melhor para si mesma, aquilo que na outra, talvez, nunca tenha existido de fato. O resultado do encontro é drasticamente revelador: “meu modelo de felicidade feneceu”.

É também como resultado desse encontro que Olívia investiga as consequências de sua relação com o ato criador e, consequentemente, com o seu respectivo púbico. Nesse sentido, é bastante interessante a seguinte questão colocada por Olívia:

“Será esse então o problema do perigo do público? Quando as pessoas confundem  tudo, e acham que são não somente o alvo da obra como também foram parte da mágica de sua criação?”

No entanto, há algo mais nessa relação: Olívia está se colocando diante de si mesma em relação ao nada que a possui a todo instante. É significativa a frase: “apenas não estou destruída por fora”.

Interiormente meio à deriva, como acontece aos personagens do cinema de Bergman, Olívia retoma sempre mais um outro, agora na  persona de Emile Flöge. Numa autotorturante investigação de si mesma, ela procura resquícios/ajuda de um tempo que foi diferente, para que possa continuar sua busca por uma saída de um presente que lhe parece massacrante e do qual deseja escapar. Seu drama ainda é o do sofrimento causado pela incapacidade de criar. Por isso não consegue sair do labirinto de espelhos que a aprisiona.

 

O AMOR AUSENTE

Rodrigo é o namorado de Olívia. Desejo e frustração envolvem os dois personagens. A incompletude que o amor provoca naqueles que a ele não se entregam totalmente marca os dois personagens. São artistas que precisam do afastamento, da solidão, para criar e, ao mesmo tempo, precisando um do outro: pode o desejo conviver com essa contradição?

“E onde está Rodrigo em uma hora dessas, hora em que eu quase poderia ter sido assassinada? Resposta: no Butão. Que espécie de namorado vai ao Butão sem se despedir direito de sua amada?”

Ao mesmo tempo em que acusa a ausência, acusa a si mesma: “Eu sinto o peso das palavras nunca ditas a ele, a enganação de minha presença, no íntimo sempre lamentando a ausência de um outro.”

O vazio que se instaura na personagem nos parece fruto de sua inadequação em realizar-se plenamente no amor, ou no amor que um dia sonhou/desejou ter. Esse amor absoluto que suplantaria todas as “dores do mundo” não parece ter se efetuado. Em relação a Rodrigo, seu namorado, e a si mesma, resta o melancólico comentário: “Tenho pena de nós dois, de nosso desencontro antes de uma troca verdadeira e mais fértil.”

Olívia não se dispõe ao risco (Rodrigo se arriscaria?) do sublime. A conclusão é que o temor prevalece na relação, dado o perigo letal que é amar: “Desvendar o sublime pode ser perigoso, e pode ser a morte do coração.” Talvez a criação artística, sua raison d´être, seja a única possibilidade de algo que possa rivalizar com o sentimento oceânico da paixão.

 

EXISTE SAÍDA?

Diante da condição de seres frágeis que somos, facilmente quebráveis e, pior ainda para os artistas, seres plenos dessa consciência, cumpre perguntar: que saída se poderia encontrar? No embate com a persona de Ana Beatriz, a resposta de Olivia é uma sucessão de negativas que coloca para si mesma: “O alcoolismo não é uma saída, a loucura não é uma saída, a noite escura não é uma saída.”

Então, onde encontrar a porta de saída ou a entrada ideal para uma vida plena (com seus milagres e horrores)?  Olívia tem a resposta:

“Tenho de me ver com minha arte, tenho de ser o que sou, abraçar cada instante como este em que dirijo através de uma paisagem iluminada de borboletas azuis e brancas, o ensejo de uma brilhante ideia que, se me for dada, devolverei ao mundo como agradecimento por tudo, por tanta vida, por tanta glória.”

Talvez a mesma saída apontada por Nietzsche contra o paralisante niilismo seja mesmo a arte, nos salvando da verdade e constituindo no sujeito o único lugar possível de expressão da absoluta liberdade: a criação. Tal qual se edificou no romance que vamos ler. O resultado é que a autora deu a si mesma e a nós “o presente de viver uma delicadeza”.

Para o leitor do romance creio que vale a pena reproduzir, antecipadamente, uma bela reflexão de Olívia sobre o significado da delicadeza:

“Sou firme, e sei ser delicada. Só os delicados sobrevivem. Só os realmente delicados sabem das forças, aceitam a natureza com seus mandos e desmandos, entendem a brutalidade e a contornam, porque só os delicados veem tudo. A vida não é real para os brutos, pois eles têm a mente e os olhos turvados. Pensam que nascem  para vencer, mas na sua couraça se perde a grande glória de saber sentir-se uma vez na vida um ser que recebe a vida, conceber a receptividade no sentido mais feminino da ideia, como um ganho incomparável. Porque a vida de verdade, a grande vida, essa é a brisa que te acaricia de leve a pele, te sopra um segredo único e íntimo e de pureza de diamante, diante da matança que é nossa condição. Só os delicados sobrevivem intactos, porque na delicadeza a essência da vitalidade está envolta por um material que nunca se desfaz, e por nada. A delicadeza é teimosa, ela não se dá por vencida. A delicadeza é. E pronto.”

Por fim, depois da longa batalha com a folha branca, retomando sua criação, Olívia entende o sentido do circulo infernal onde penetrou e de onde saiu:

“O círculo sou eu, vejo agora. A razão de eu ter admirado essa forma perfeita aqui na esquina era o espelhamento. Eu me via o círculo feito para que tudo passe em volta, rodeando, contornando e adornando a existência. Eu sou essa forma perfeita. E vou fazer meu trabalho, como é meu dever.”

Fechado o círculo da criação, o amor pode aparecer, deixando Olívia “tão leve e vulnerável que a menor brisa pode levar longe.”

E a metáfora do corpo, lugar de comunicação entre Olívia e o mundo, reaparece: “Uma obra pronta é como um corpo ao sol querendo ser visto.”

E aqui estamos nós, leitores, prontos para a delícia dessa visão.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

entrevista - por Jovino Machado

05/11/2013 21:34:00
Patricia Maês: escritora, musicista, atriz



Por Jovino Machado


                                                                        Foto: José Rubens Moldero
1: Quem é Patricia Maês?
Patricia Maês é uma pessoa que indaga. Vivo me perguntando para que serve isso ou aquilo, e no fim me vejo querendo achar graça em viver no mundo sem nexo. Quando sou bem sucedida e acho o caos até gostoso, é o meu melhor dia. Nem sempre é possível, mas eu não desisto.
2: Quais foram os seus primeiros contatos com a literatura?
Sempre me senti atraída pelo objeto livro, e por isso desde pequena gostava de remexer nas estantes de casa. Gostava das enciclopédias, e ganhava muitos livros infantis. Tive coleções maravilhosas, e acho que isso definiu meu respeito pela escrita. Minha brincadeira mais comum era abrir as portas de um armário grandão que tinha lá em casa, cheio de livros, e fingir que ali era uma loja. Eu imaginava pessoas chegando e me falando de alguém, sua personalidade, seus gostos, e aí eu indicava um livro.
3: Existe algum fato ou acontecimento entre a infância e a juventude que determinou sua opção pela literatura?
Quando descobri a geração do Fernando Sabino (minha grande paixão na infância), e lia os contos e as crônicas onde ele falava da convivência com seus contemporâneos, eu achava que um dia também moraria no Rio e os encontraria para aqueles cafés no meio da tarde. Eu nem me tocava que o tempo passaria, eles ficariam velhos e até morreriam. Era o Paulo Mendes Campos, o Otto Lara Resende, o Hélio Pellegrino, o Drumond, enfim, e eu me imaginava fazendo parte da turma, conversando com eles sobre nossas produções. Eu tinha uns dez, doze anos...
4: Como foi a sua experiência com Antunes Filho no Centro de Pesquisas Teatrais?
O Antunes tem a fama de bravo, mas tive sorte com ele, que gostava de mim e me achava talentosa. O máximo que ele me disse em tom reprovativo foi que eu era uma pessoa muito espaçosa. Isso vindo dele, que colocava todo o elenco abaixo de zero diariamente, foi até um elogio. Mas o Antunes tem tanto a ensinar sobre ser de fato um artista, que mesmo tendo ficado pouco tempo no CPT aprendi demais com ele. Tanto que me arrependi quando pedi para sair. Perdi meu tempo nessa ocasião, logo eu que era cheia de energia e sonhos.


                                                                                                     Foto: Maurício Piffer
5: O que te dar mais prazer? Tocar, representar ou escrever?
Tudo é muito importante para mim. O tempo de musicista foi determinante para “calibrar” a minha percepção, experimentando estados de concentração que só o contato com o aprimoramento do som proporciona. Lidar com afinação muda a nossa percepção da vida. Mas escrever é muito melhor agora, é algo que faço na intimidade, em casa e calada, que é a maneira como eu mais gosto de ficar.
6: Fale sobre a montagem da peça "Os ratos soltos na casa".
Fazer essa peça foi uma delícia. Primeiro porque era um desafio, um texto difícil, com falas enormes e um tema cheio de psicologismos para se explorar. Fui até o limite entre a dramaturgia e a literatura, mas acabou funcionando satisfatoriamente. Minha personagem se alternava entre uma mulher histérica, neurótica e esquizofrênica, e isso era bem desenhado. Exigia muito de mim fisicamente, mas me dava um grande prazer.
7: Como foi a criação das letras para algumas canções do CD "Horizonte Vertical" de Lô Borges?
O trabalho do Lô é muito responsável pela construção de todo o meu universo estético. Gosto das suas composições desde muito cedo, e na adolescência eu sonhava em tocar com ele. Quando me vi virando sua parceira, senti só gratidão pela oportunidade de dividir composições com um criador que é um verdadeiro gênio. No caso do Horizonte Vertical, eu conhecia muito bem as músicas antes mesmo de pensar em fazer as letras para elas. Ouvia as músicas com o Lô, ia às gravações, e quando resolvi que podia contribuir, saiu tudo muito rápido, porque eu já amava as canções e já tinha incorporado muito tudo aquilo.
8: Sua formação musical erudita tem influência no ritmo de suas narrativas literárias?
Sim. Costumo dizer que escrevo como quem faz música. Ter tocado um instrumento tão difícil me fez experimentar estados de concentração muito profundos e isso acaba facilitando para que eu use a imaginação ao entrar em universos desconhecidos, no mundo das personagens que invento, certamente. Vejo minhas narrativas como linhas melódicas se desenhando, definidas pelo tamanho das sentenças, por exemplo e principalmente. Quem tem a oportunidade de viver no universo dos sons e depois vai para outras linguagens, tem um elemento a mais de sutileza para contar. É assim com quem dança também. Tenho uma amiga bailarina que virou uma grande roteirista de cinema. No caso dela, a música foi fundamental também como suporte para se jogar em outras linguagens.
9: A bruxinha ucraniana Clarice Lispector ofuscou a geração dela. O que ela representa hoje para você como inspiração?
Quando eu ainda tocava e achava que não havia meio mais puro de expressão do que a música, a Clarice me provou que viver no meio das palavras era igualmente promissor quanto a ter recursos e ferramentas de expressão e comunicação. Ela mudou tudo na minha vida. Devo a ela grandes deslumbramentos e a acho inigualável.
10: Como foi o seu encontro com Lygia Fagundes Telles? O que ela disse pra você?
Eu sempre encontrava com a Lygia em palestras de outros escritores, mesas redondas em bienais do livro, etc... e acontecia de sempre sentarmos lado a lado, o que me deixava muito feliz. Um dia, conversando com ela, contei que era escritora e atriz e tive uma surpresa. Ela praticamente colocou o dedo em riste na minha cara e disse que “Nós, mulheres das letras, não podemos ficar peladas!!!”. Ela foi categórica: “Olha, você é atriz e é uma moça bonita, mas fique atenta, se você escreve, não fique pelada!” E repetia: “Nós não podemos ficar peladas!!!” Achei fantástico porque ela, uma senhora, ainda se incluía na história toda dizendo “nós”. Ela é demais.
11: Nietszche afirmou que um artista é estimulado por duas questões fundamentais: ou por ódio ao mundo ou por amor a ele. Por que você escreve e para quem você escreve?
Acho que é tanto por ódio quanto por amor ao mundo. Não separo essas duas forças. Eu escrevo para aprender a viver com as minhas limitações e reclamar disso, de alguma forma. Agora, para quem?... Penso que eu talvez escreva para esses que também não se sentem muito à vontade com as coisas do jeito que elas são, os que querem mais delicadeza, um maior número de túneis com uma luzinha lá no fundo.
12: Como é o seu processo de criação? Existe algum ritual na hora da escrita?
Não tenho um ritual. Tinha quando era violinista. Colocava uma música antes de começar a estudar, e ficava sentindo o instrumento vibrar nas minhas mãos para abrir o dia. Hoje sento-me para escrever a qualquer hora, e as coisas acontecem.
13: Quais são os autores que influenciaram a sua literatura?
Como já contei, o Fernando Sabino foi fundamental. Ele me fazia querer viver como ele, ter o escritório dele, os amigos, etc... Depois vieram as mulheres, como Clarice, Lygia, Elizabeth Hardwick, Dorothy Parker, Virginia Woolf, e até a Margareth Atwood. Foi mais ou menos por aí.
14: Fale sobre o seu novo livro que está no prelo.
Ele se chama Tempos de Olívia, é todo escrito na primeira pessoa e no presente, o que foi um desafio muito saboroso. Estar no aqui e no agora o tempo todo nem sempre é fácil. O livro fala sobre como uma artista de sucesso se comporta quando pela primeira vez em sua vida se vê em um hiato de criação. É período de entre-safra e ela não sabe como viver assim, sem um projeto que substitua o outro imediatamente. Então lhe aparecem questões sobre as razões de criar, os motivos que a mantêm ligada a esse universo artístico. Ela começa a medir sua vaidade, sua segurança nos talentos que lhe são atribuídos, e enfim, é instaurada uma crise em seus dias e ela pena um pouco para compreender e superar.
15: O que é mais importante na vida para Patricia Maês?
Eu queria ser realmente útil. Tenho uma amiga que ajuda pessoas na melhor idade, quer abrir uma ONG ou uma OSCIP para resgatar animais abandonados, e observo tudo isso pensando que aí está alguém que faz realmente uma grande diferença. Preciso aprender a fazer o necessário. Quando alguém é despertado de alguma forma por algo que escrevi, já é um caminho mas não é tudo. Se tenho uma meta essa meta é começar a crescer nesse sentido.


                                                * * *
 
Jovino Machado (Belo Horizonte/MG). Formado em Letras (UFMG). Atua como restaurateur. Publicou 10 livros, entre eles Trint´anos Proustianos (Mazza Edições, 1995), Disco (Orobó Edições, 1998), Samba (Orobó Edições, 1999), Balacobaco (Orobó Edições, 2002) e Fratura Exposta (Anomelivros, 2005). Recentemente, 2009, também publicou a plaquete poética Meu Bar Meu Lar. Próximo lançamento: Cor de Cadáver (Anomelivros, 2009). Participações em Dimensão (Revista Internacional de Poesia, Uberaba, MG, 1998), A Poesia Mineira no Século XX (Imago, Rio de Janeiro, 1999), A Cigarra-Revista de Poesia (Santo André, SP, 2000), O Melhor da Poesia Brasileira – Minas Gerais (Joinville, SC, 2002), antologia poética O Achamento de Portugal (Fundação Camões, Lisboa, Portugal e Anomelivros, 2005), Suplemento Literário de Minas Gerais (2007) e Rascunho (2008). Menção honrosa na revista literária da UFMG (1991) e terceiro prêmio de Poesia Falada de Campos dos Goytacazes (RJ, 2002). E-mail: jovinomachado@yahoo.com.br  Blog: http://jojomachado.zip.net  


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quinta-feira, 10 de outubro de 2013

fragrância liberdade

                                                                                                                  Francesca Woodman


A vida de Helena no presídio, onde a hora do banho era o recomeçar de cada dia, estratégia simples de manutenção da autoestima, esse mistério alimentado pelo fato de manter perfumado o possível, sentir-se limpa apesar de tudo. Talvez por ser isso, limpa, o oposto simbólico do que poderiam pensar dela aqueles que ficaram do lado de fora, quem a viu ser condenada, ganhar a ficha permanentemente carimbada, e a mácula que sobreviveria à sua história.
O tempo. As horas que passava dobrando e redobrando roupas em duas pequenas gavetas. O pouco que tinha e que ela experimentava, costurava ajustes, mantendo-se vaidosa e magra. Tentava calcular sobre os anos que teria ali dentro, o quanto se sustentaria conservada caso não desistisse dos rituais tão ligados à integridade desse ser que no seu íntimo, chamava a si mesma de menina. Pelo menos era assim até entrar ali. E era preciso ter persistência. Ficava perto das colegas que entendiam suas motivações, e as que não a compreendiam em tão fervoroso empenho para ser positiva, ela tentava ignorar. Das colegas próximas, influenciou muitas a ter esses específicos cuidados, mostrando a simplicidade de se caprichar no banho, apropriar-se de prazer no simples gesto de cuidar dos cabelos, e o quanto isso estava intimamente ligado a ter esperança. Todo o fazer estava preso a elas mesmas, os corpos, entrada de seus espíritos castigados além da conta.
Sim, ela sabia ser contagiante. Dizia de formas variadas ser preciso superar o desânimo vindo do nojo pelos azulejos que ganhavam respingos do banho de tantos outros corpos. O importante era manter o foco no perfume que ficaria daquele bravo ato. Abstrair o que não poderia ser contornado, focar na construção e conquista da delicadeza de se sentirem moças de asseio exemplar, a vida com dignidade mesmo em clausura. A sensação extraída disso lhes garantiria a vida, e a sensação era a cada manhã nova, de uma leveza e manha, como só uma menina de fato pode inspirar.
Assim era o mundo de Helena, penteando-se tão cedinho e escolhendo o vidrinho de suas loções baratas trazidas por sua única visita. Ela era feliz naquele momento em que o cheiro doce e fresco se espalhava por toda a cela, e de lá agradecia a Deus por estar tão perto da verdade de sua alma mesmo estando tão longe do que chama de casa.
A mulher que por um passo em falso seria para sempre chamada de não pura, não o suficiente para viver além do mundo emparedado. Durante a permanência nesse mundo, ela teria de ir até o fundo das outras paredes, as da vida de antes, descobrir o que nela fez abrir desde muito cedo os portões do inferno. E o inferno hoje só não lhe parece mais assombrado porque em seu coração que não desiste, uma voz adverte para não concordar de todo com o veredicto, não se permitir ver tudo caindo em desgraça sem retorno. Haveria um ponto de mudança. Um mergulho corajoso dentro de sua falha e depois no nascimento do que veio a dar nisso, a nova condição interior, ajudaria a encontrar o antídoto do destino mau. A virada.
Mas além do feito ruim, existe o querer de agora, também já feito, e isso era a certeza da vida que permite salvação, a solução pronta onde menos se espera. Helena escolheu ter a fibra, o tônus no sorriso, ainda que garimpado em duríssima escavação. Ela escolheu escolher.
Nem parecia a mulher da rebelião, ferindo seus dedos até os ossos nas grades e quebrando o punho na parede quando viu a companheira de cela morrer enforcada. Era tanto o que já havia tido, sem contar quando escapou das facadas mas teve o estilhaço de um vidro lhe rasgando o rosto. Ou o homem tentando molestá-la com a promessa de dois cigarros, a doença de cada verão, o parto da moça que viu a criança morrer no chão gelado, a comida fazendo vomitar três vezes no mesmo mês, o tumor sem tratamento da jovem que dizia não querer sucumbir, a goteira atormentando as noites, o ralo devolvendo o esgoto, baratas passando no teto, os sapatos roubados, dentes que doem, e a lembrança detestável do cheiro de colchões queimando no corredor, a fagulha lhe atingindo em um dos olhos sem piedade.
Mas no dia do fogo pode ver finalmente, muda de choque, que saindo dali também outro incêndio a esperava. A queimação por estar desprovida de toda proteção necessária caso visse a rua novamente. Conhecia o flamejar cruel de querer gritar já sabendo que todos desviariam.
Por isso os cuidados ao enfeitar a cela, pintar a prateleira dos vidrinhos, bordar o nome na fronha, apertar a alça da blusa. E na hora do banho ela reza pela moça bonita que em minutos voltará a ser imaculada, impecável e coberta de fragrâncias de frutas e flores.
Helena é pela manhã, sempre de novo, a flor de menina. Para todo efeito viva, de insuspeitável doçura morta.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Silenciosa


 
 

O recomendado pelo pedreiro que faz a manutenção dessas coisas no edifício é mudança no banho. A hidromassagem vaza e o apartamento logo abaixo recebe infiltração em forma de uma enorme mancha escura por todo o teto. Será necessária a total remoção da banheira para se consertar o que fez a água escoar para onde não deveria.
Mas ela não tem dinheiro. A aposentadoria precoce, devido a um problema sério de saúde, não lhe garantiu receber quantia justa, e no meio de tanta perturbação na hora dos acordos para que esses trâmites fossem encerrados de uma vez por todas, ela achou por bem não reclamar de nada e se contentar com o estabelecido.
                  A reforma está fora de alcance. E isso muda não apenas os banhos, mas a sua principal atividade. Há exatos nove meses, a chama de ser um bicho social se apagou dentro dela, e desse modo lá se foi a vontade de ser vista ou necessária. Viver o silêncio em um mundo observado apenas pela janela ficou sendo a melhor opção. E ela encarou como trabalho, fez isso para sentir-se dona de um projeto de vida, coisa que justificaria a reclusão e a pouparia, sobretudo, de questionar o medo dos novos estímulos. Pensou nos artistas que escolhiam o isolamento como condição primeira para chegar em realização e dignidade. E ela era digna com toda a quietude, não ajudava em nada, mas não fazia mal a ninguém, não incomodava e nem divergia. Como isso era bem vindo. Estar no mundo da forma mais delicada, não pertencer a ele ostensivamente, querendo coisas, engendrando mudanças. Nunca mais, nada disso. Ela só queria dar paz e receber indiferença, aquela que nunca a cobraria de ter um pouco mais ou de parecer adequada. Estava, inclusive, ficando antiga, as roupas tratadas com carinho para que demorassem a envelhecer ficando inevitavelmente fora de moda. Mas não ligar era parte importante do desprendimento.
E foi quando assumiu a nova condição, a não dependência de aprovação, que resolveu ter um luxo e saber chamar a isso de prazer. Mandou instalar o pocinho com jatinhos de água provedores do relaxamento e então a brincadeira da vida ainda não havia acabado de todo. Duas vezes ao dia se despia e entrava no particular recanto de não dar satisfações a ninguém. Os  momentos na água seriam as sagradas horas de desfrutar ser ela mesma sem aqueles receios habituais, como quando pensava em ir à rua fazer compras. Com isso gastava também menos dinheiro, porque encontrou um divertimento ali no lugar mais escondido da casa, o banheiro bolha de indiscutível confiabilidade, onde nada escoava da pouca renda, nada era cobrado de seu tempo de fazer só o que quisesse.
No fim da tarde, quando já começava a escurecer dentro da sala de banho e esconderijo, a água parecia mais interessante. A hidromassagem era desligada e o silêncio só se quebrava com pequenos pingos, gotas diminutas, frágeis como ela mesma se via. E aí então não estava mais só em seu pequeno estar, cuidando para ocupar espaço de maneira miúda.
Mas a paz aquática estava agora ameaçada. O pedreiro dizendo que essa e aquela torneira não deveriam ser abertas jamais. E quando o homem saiu do apartamento ela se viu com o problema: o que será de meus momentos? Transitou entre os quartos e a sala por horas, refazendo contas mentalmente, até ter certeza de que as finanças não comportavam o que lhe estava sendo proposto. Teria de voltar aos banhos comuns, sem os jatinhos e bolhinhas com sons de natureza. Tudo bem, repetia, e chegou a dizer em voz alta, no tom de resignação completa.
No chá das três, pensou que seria o momento de submergir. Lembrou que vez ou outra até levava a xícara para a banheira. E lá ficava, beneficiando-se dos aromas misturados, água pura, límpida, e o chá. Erva cidreira, doce, camomila, tudo sempre calmante. Mas agora não mais a imersão, não mais o outro mundo onde os medos se molham e dissolvem escorrendo no vapor do azulejo. Bom mesmo era estar envolta no líquido quente, a água na pele que nem carinho mais espera.
Os azulejos estampados de verde musgo com pinceladas de rosa pálido são muito reconfortantes. Folhagens sobem pelas paredes com singelas florzinhas que dizem muito do novo estilo discreto, e do tipo que, mal se viu, já se esvai. São flores nubladas e derretidas, cores que nunca agridem.
E então o chá fica diferente no dia da notícia. A grande distração, afinal chamada de prazer, havia sido vetada. Restava a televisão, e era só acioná-la. Mas nada daquela chuva de cores e sons desordenados, o mau gosto das vozes como se a vida fosse só festa lhe agradava mais. Repelia tudo o que se parecesse com aquilo. Livros? Já havia experimentado mais de uma vez todos os da estante. Ginástica, talvez, mas o corpo pedia a calma dos iogues, vivida alegremente na cápsula de mergulhar. Tudo teria ido pelo ralo, tudo lhe teria sido negado por causa da mancha no banheiro alheio. Nenhum sentido.
De repente achou de grande brutalidade essa nova condição. A mulher quieta ali, pouco parou nesse tempo todo até para imaginar que existia gente no andar abaixo. A aquisição da banheira era um ato lavrado de que agora ela se bastava, tanto que a mini natureza estava garantida para não precisar atravessar o caminho de mais ninguém. Assim, a razão do acontecimento lhe escapava com gravidade. E aos poucos foi se tornando inconformada.
No dia seguinte se conteve triste nas horas do tradicional descanso. Olhou as paredes da cozinha e leu o folheto de ofertas deixado na soleira da porta. Nem o chá tinha muito sabor, em tudo faltava aquela energia que ainda a fazia pensar em ser alguém. Dessa forma, sem objetivo de agrado nos dias, ela passava a se parecer cada vez mais com as flores desbotadas nas folhagens subindo pelas paredes. E visitava com frequência seu espaço sagrado, acariciava o ladrilho onde pousava a xícara habitualmente, vendo tudo com desgosto.
As contas eram refeitas de tempos em tempos, números no caderno fazendo o mesmo percurso, mas nada de novidades. A falta de folga nas finanças ainda não tinha lhe surpreendido como dessa vez. O comedimento era encarado sem desconforto, porque precisava cada vez menos de requintes ou mimos. Estava vivendo fase de grande satisfação e podia se dizer abastada na medida em que não esbarrava em controvérsias, e por controvérsias ela entendia qualquer contato, de qualquer espécie, com qualquer pessoa.
Tentou se instalar dentro da banheira seca para tomar o chá, imaginou no fim da tarde os pingos companheiros e cantarolou uma música apreciando o eco que ali fazia. Depois viu que não precisava de música.
Tentou de tudo, ficou nua e olhou seu corpo, imaginou que era bonita, forçou ao máximo até chegar em um prazer mísero que a fizesse lembrar da entrega ao mundo impenetrável sobre o qual ninguém jamais saberia e que nunca precisaria dividir. O mergulho era, portanto, como a liberdade, era como ter segredos a mais, como criar, como se inventar. Sem o prazer das águas ela estava enredada no universo das repetições. Tinha de ficar perambulando, o dia sem quebras de acontecimentos relevantes dividindo o tempo, dando sentido às horas de sobra ao redor.
Então resolveu fingir que não sabia de nada. Abriu as torneiras, encheu a banheira e se recostou para apreciar a madrugada de uma noite em que não podia dormir. Fez isso continuadamente, certa de que nada aconteceria, afinal, o que uma mancha no teto poderia denunciar era mínimo. Se enganou.
Passou pouco tempo até que tocassem a campainha. A mulher abriu a porta assustada, não se relacionava com os moradores do prédio. O vizinho disse saber do uso da hidromassagem, porque além de ouvir o barulho da água, a mancha estava ficando mais intensa. O moço perguntou se o conserto do vazamento seria realizado e ela, tão desprevenida e sem malícia, disse a verdade, disse não ter dinheiro esperando talvez compreensão. Percebeu que ele não podia crer em tanta simplicidade para comunicar o voluntário agravamento de um problema como aquele, e que a tratou como alguém com certa debilidade. Ela preferiu abstrair esse detalhe sem se ofender, prometendo não fazer mais nada. Tudo para obter logo o alívio de fechar a porta e encerrar contato.
Mas nada parou. Chás e imersão, relaxamento e indiferença. As semanas passavam e ninguém se manifestava. Assim pensou em tudo finalmente definido, vizinho consciente das suas dificuldades, o mundo em concordância com o que ela podia fazer.
Mas chega a tarde de surpresa ainda pior do que o estranho à porta. No chão se via uma poça de água escura, água brotando de todos os cantos daquelas paredes de folhagens tão tranquilas. O líquido quase negro era espesso, tinha aspecto viscoso e começava a exalar cheiro estranho. Curiosamente passou a achar a banheira um cubículo pequeno demais. Ela queria sair dali e não conseguia, porque pisar naquele mistério seria impossível. A campainha e o telefone tocavam ao mesmo tempo, quando então viu tudo fora de controle.
Venceu a aflição do lodo, vestiu o primeiro vestido que viu pela frente, e, ainda molhada, abriu a porta. O telefone explodia, e no corredor do prédio várias pessoas a olhavam indignadas. Parecia que o vazamento tinha tomado proporções assustadoras, um cano havia se rompido e a água escura escorria pelas paredes de vários dos apartamentos. E não era o caso de se explicar, afinal fora pega no pulo, molhada e recém saída do banho causador da encrenca.
Depois de longos minutos de mal estar, sem poder se defender, chegou finalmente a hora de se recolher e planejar como limpar tudo aquilo. A banheira estava cheia, o chão alagado, a sujeira vazando para o quarto, corredor, tomando a casa.
Ficou sem ação. A campainha tocou novamente, dessa vez com gente querendo olhar o estrago, oferecendo o que deveria soar como ajuda, mas que soou muito mais como intromissão. Estavam todos loucos para ver a casa da reclusa misteriosa.
Ela disse não à expectativa geral, e a insistência de todo o prédio se juntava à dela mesma em não saber o primeiro passo para começar a organizar-se.
Até que quis voltar à proteção na hora em que o barulho das chamadas era um só grito sufocante. Passou dessa vez pela sujeira já sem nojo, não sentindo nada. E aí percebeu os sons cessando subitamente. Viu a xícara de chá esperando com o líquido frio, o próprio tanque todo frio. Como poderia ter se esquecido? Entrou novamente no banho, suspirou relaxada e abriu as torneiras todas. Viu a água transbordando, o calor voltando, e não ligou. Continuou bebendo tranquila, até que ouviu o estrondo vindo da sala e atinou na hora que era a porta sendo arrombada. O máximo que conseguiu foi no ímpeto do desagrado atirar a xícara na parede, mas logo retomou a calmaria.
O homem da manutenção apareceu e a encontrou inerte, olhar fixo para os azulejos. Constrangido, chamou várias vezes, mas não ouviu resposta.
Nesse dia, durante toda a tarde, o apartamento foi visitado pelo edifício inteiro, o recôndito sendo espiado por cada morador, todos em fila indiana no corredor dos quartos, muita organização e atenção para a apreciação da exposição. Ela era parte de inédita instalação que atraía expectadores sedentos e curiosos com o que essa mulher tão calada pode ter de mais secreto.
Os olhares eram cheios de significados, mas ela escolhia não encarar para não ter de classificar. Sabia só da pura e insensível curiosidade, morbidez exposta ali como socialmente aceitável, tentação de invadir e deixar escancarado que viver em reclusão não poderia ficar por isso mesmo. Nunca. Não neste mundo de gente normal pedindo relações, exigindo que sejamos todos razoáveis na boa vontade de participar.
A fila andava vagarosa e a estátua inerte se fixava nas flores cor de rosa, ainda de alguma forma imbuída de espírito estóico, sem baixar a cabeça, mas também sem reflexo para se cobrir. Ela se protegia, mas sabia que o fazia de um jeito incompleto. E de qualquer forma nada mais contava, a bolha havia sido estourada, o invólucro protetor das questões mais mundanas rompido para nunca mais voltar a ser o mesmo. Nem que ganhasse o dinheiro necessário para comprar outra banheira, reformar a casa toda, e nem se com isso ela ganhasse mais conforto. Agora era mesmo tudo pelo chão, junto com a água preta.
A vida ali já não era nada. O que lhe parecia ser o acabado de antes se tornava aos poucos o oposto da não vida deflagrada nesse dia, resultado do contato brusco com a desenfreada falta de comedimento do universo. Há nove meses ela quis dar seu último basta e agora via o nascimento da monstruosidade tão temida. Atirar aquele objeto na parede ilustrava o que já podia suspeitar de todo o esgotamento, passageiro freqüente nos dias, e então tal sentimento assumia outra importância nessa hora.
Só quando escureceu a visitação parou. No anoitecer saiu enfim do encantamento sobre o qual não havia mais nada que pretendesse compreender. Conseguiu levantar, deixar o poço gelado e alcançar a toalha, enrolar o corpo que já havia sido parte das coisas que guardaria do mundo. Cobriu-se mesmo sabendo que nunca mais deixaria de estar exposta. Suspirou sem sentimentos, e como se fosse nada, colheu os cacos da xícara quebrada há horas. Seus cabelos voaram sobre o rosto, e como gesto natural fechou a janela deixada aberta. Era tudo inútil, já que sabia que nunca mais pararia de sentir o frio.
A água no chão permanecia. Escura, difícil, errada. Mas a água estava ao menos silenciosa.

 
 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Tempos de Olívia


Primeira parte - A Excelência

 

Pronto, pesquei. Uma verdade escondida que mudou a direção dos pensamentos do dia. Hoje conversando com uma amiga, ela me contava do filme onde uma mulher descobria ter apenas mais oito semanas de vida, e exclamei com tanta naturalidade: que maravilha! E eu mesma fiquei surpreendida demais. Minha amiga não comentou nada. O diagnóstico para a inveja tão exclamativa em relação ao triste destino da personagem do filme é meu cansaço sem nome, cansaço não de ofício, mas sim de existência interior para a qual não tenho visto correspondência nas coisas externas. A espiritualidade tem sido muito exercitada por aqui, mas a quietude, amiga desde sempre, não tem trazido a paz de costume. Só questionamentos que nunca deságuam em campos mais esclarecidos, propiciadores de dissolução das dúvidas e dívidas com o próximo. É período de acumulação, e tudo que chega apenas fica, fica, faz mais peso e ocupa mais espaço. Eu tenho de me livrar de coisas, para não querer mais me livrar da vida, como me pareceu ao exclamar tão favoravelmente ao enredo do filme terrível.

Com calma eu analiso o passo mais recente e sei da vantagem de saber tomar decisões nesses momentos cruciais, onde a razão importa menos do que a coragem de dizer sim ou não, de supetão, quando o momento de saltar se apresenta. O saltar. A chance de ruptura, mesmo parecendo loucura. E eu sou uma que rompe, ousa dizer o sim e o não da dissolução, do desmoronamento que pode me levar além de onde estou. Nada a declarar a quem não me entender de pronto. Mentira, tenho paciência, e tal preciosa matéria extraio também do fogo do meu talento. Serei sucinta, direta e sincera. E este é o meu momento. Meu. Ele é meu. Seguro o tempo desse acontecimento e com ele espero fazer algo por mim mesma. Nessa volta por dentro acharei o novo que no entanto sempre esteve aqui. Nada é por acaso e se largo algo, se abro os dedos e deixo o pássaro voar, é porque isso estava escrito, e escrito por mim mesma, a que inventa tudo, a que acha na lama ou na delícia pepitas garimpadas com suor de alma. Eu vou ao meu garimpo hoje sem os instrumentos de lavagem das pedras duras e feias. Vou ao meu local de tirar do chão a preciosidade, às vezes da terra seca, às vezes de pedra brutalmente cavada com minhas unhas de princesa, mas vou apenas olhar. E sei da aridez de se viver cultivando no agreste, viver do garimpo no lodo, da pesca no mangue, e de matar a sede com a água do poço cavado bem fundo. Tudo muito áspero e dramático? Nada. Minha vida é feita de saber dosar o drama, e a tragédia disso é ele não se dosar jamais na tranqüilidade. Somos criaturas que atravessam vales de sombras porque nas sombras estão as ideias, não há jeito. De luminosidade fazemos nosso caminho apenas no depois dos achados mais importantes, porque o durante é de caos, escuridão e medo. Medo de nunca achar nada melhor, medo de não ter mais as unhas que cavam e de não ter mais a sustentação na hora de escalar a pedra mais alta que nos desafia, e quando pressentimos o tesouro do dia lá em cima. O mesmo se dá para baixo, nos abismos que tememos não termos a disposição de espírito para mergulhar. Nada assusta mais do que não ter coragem suficiente, o mesmo que então não merecer tirar a espada da pedra. A coragem é nossa matéria prima, antes de qualquer outra a se apresentar. Queremos merecer mais do que ninguém, queremos a glória da ciência que desvenda, desvenda o destino e clareia a trilha nos outros vales, e isso para variadas multidões. Queremos dizer às multidões do caminho seguro e firme, onde o chão jamais cederá. Somos artistas e o que sabemos é de vidas imbuídas de missões, de gritos precedendo as grandes calamidades como que alertando às almas afins de que fomos à frente, e sabemos indicar a direção mais reta até a cobiçada grandeza de espírito. Já fomos e voltamos pelos campos do conhecimento adquirido dando a força do corpo como escudo para os males que há tanto a humanidade cansou de ver e se desviar por pura aflição, a pequeneza da qual todos se esquivam tanto, que pretendem ignorar com total afinco, fingem nem tomar conhecimento. Somos os arautos da libertação para aqueles que não dormem e não sabem, somos os gladiadores matando as feras que matariam os mais sensíveis. E assim eles podem se aproximar melhor da pedra, quando querem. E ela já está polida, carregada da proteção da beleza.  A beleza é nosso papel, e só por ela estamos aqui.

Maledicência e morte. Dificuldade e superação. Redenção pela simples crença de que quanto maiores os pecados inspecionados maior será a ventura de ter o que dizer ao próximo. Por isso procuramos no ser humano seu lado mais flagrantemente desumano, o mais cruel afirmando nada ter visto de errado no momento em que matava seu semelhante com o olhar de desprezo por sua maior agonia. É dessa invasão na alma do mal que se explica nossa incrível capacidade de doação, porque dói presenciar e narrar mediocridades. O medíocre nos agride e nem por isso passamos direto por ele. Ao contrário, vamos ter com ele e o interpelamos nas profundezas das razões mais amargamente obscuras para que suas ações se deem tão distantes da graça que desejaríamos proclamar como definitiva na vida de todos nós. Mas da miséria dele tiramos o exemplo da superação ou talvez a misericórdia de quem olha e admite uma existência diversa. É nossa a imensa dor e tantas vezes, alquebrados, pedimos clemência por ter de ver tamanha brutalidade na realidade de existir do começo ao fim, sem pausa e sem tréguas. Existir neste mundo e ser uma pessoa. A tarefa magnânima. E juramos que estamos aqui para facilitar as coisas. Que assim seja.

Feira de Frankfurt

A Cubzac leva a obra de seus autores para a Feira do Livro de Frankfurt 2013, em outubro. A editora fará parte do stand do Brasil, país homenageado na Feira.